TEOLOGIA E JARDINAGEM — Um ensaio em Teologia Bíblica — Parte 1

Diego Montenegro
21 min readMar 29, 2024

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INTRODUÇÃO

Este ensaio é um escrito de teologia, mas não o escrevo para teólogos “profissionais”. Eu mesmo não sou um teólogo. Sou amante da teologia e um teólogo “amador”. Estudo teologia desde a minha conversão, isto é, desde 2009, mas hoje a teologia para mim não é mais uma questão de estudos acadêmicos, fazer seminário e ter um diploma. Teologia para mim é algo que me ajuda a ver como que a bíblia (66 livros) é um livro que tem uma só mensagem. Eu não escrevo este livro para explicar doutrinas difíceis, nem para falar sobre mistérios que ninguém entende e, muito menos para dizer qual a igreja certa. Eu escrevo para compartilhar com você qual o “meu” entendimento da Bíblia Sagrada e da sua mensagem central. Obviamente, submeto esse esforço ao crivo de teólogos que queiram me auxiliar no meu melhoramento, entretanto, meu objetivo é compartilhar essa “minha visão” com pessoas que não são leitores de teologia, mas que queiram conhecer a Bíblia e seu ensino central.

Eu escrevo “minha visão” entre aspas porque obviamente eu escrevo isso após muita leitura de diversos autores da teologia. Mas mesmo com aspas é a minha visão, porque é resultado de leituras distintas de teólogos que não concordam entre si. Por isso eu decidi não fazer citações de falas de teólogos e nem colocar referências de livros desses teólogos. Entretanto, para não passar em branco quero deixar algumas indicações de obras que tem me influenciado nesses anos de estudos de teologia. Aqui neste ensaio você estará recebendo doses de teologia da reforma protestante, de Lutero e Calvino, por exemplo e da Confissão de Fé de Westminster, mas também de autores reformados modernos contemporâneos como Charles Spurgeon, J.C. Ryle e John Piper. Entretanto, acho que a maior influência aqui é de uma busca por ler a bíblia como história e narrativa. Com isso você (assim como eu) estará recebendo influências de obras como o Comentário Histórico Cultural do Antigo e Novo Testamento da editora Vida Nova, assim como dos comentários bíblicos de teólogos como John Goldingay e N.T. Wright. Eu sei, são muitos nomes. Você talvez não faça ideia de quem eles são ou do que significa a teologia deles, mas eu precisava deixar isso registrado para que ninguém pense que eu estou tentando me colocar como o cabeça que pensou tudo sozinho. Não. Eu estou apoiado nesses gigantes. Contudo, repito: eles não concordam em tudo entre si. São teólogos de correntes teológicas diferentes. Eu combinei o que aprendi com esses teólogos — o que pode ser algo perigoso — porque tenho um objetivo. Repito: meu objetivo é compartilhar a minha visão da Bíblia Sagrada e do seu ensino central. O jeito como quero compartilhar essa minha visão é por meio de uma história. Então, de certa forma, este não é apenas um escrito de teologia, mas um livro de história bíblica. Esse é um livro que começa em Gênesis e termina em Apocalipse. O objetivo não é abordar cada livro da bíblia, dar informações técnicas sobre seus autores e doutrinas. O objetivo é ir de Gênesis a Apocalipse como se eu estivesse narrando uma história para você. E de fato é isso: há uma história que se inicia em Gênesis e se completa em Apocalipse, mas muitas vezes a gente não percebe isso. Eu espero poder ajudar você a ver isso. Este ensaio também tem o objetivo de que, ao entender qual é essa história que a Bíblia narra, você possa viver essa história em sua vida. Meu desejo é que você não apenas entenda essa história, mas (principalmente) se veja dentro dela e se sinta convidado a participar dela de forma ativa, agindo e percebendo que sua vida é importante para que um certo capítulo dessa história se desenvolva.

E como essa história está estruturada? Eu estruturei essa história em oito capítulos. A tendência é que o tamanho dos capítulos vá aumentando conforme vamos chegando ao fim da história. Os dois últimos foram os mais complicados de escrever e acho que serão os mais complexos de serem lidos, mas isso porque é a parte mais tensa da história que eu (e a Bíblia) estou contando para vocês. A ideia dos oito capítulos é a seguinte: O primeiro capítulo aborda a criação de Deus no jardim do Éden e o primeiro casal (Adão e Eva) e o plano de Deus para sua criação, que foi quebrado quando a humanidade pecou. O capítulo dois aborda as consequências da queda e como Deus lidou com essa nova realidade de uma humanidade que não queria mais servir a Ele. O terceiro e o quarto capítulos falam das consequências de viver sem Deus e das promessas que ele faz para aqueles que se arrependerem dos seus pecados e desejam voltar a viver na presença de Deus. O quinto e o sexto capítulo abordam a solução surpreendente de Deus para o problema dos desvios constantes da humanidade. O capítulo sete fala sobre uma nova fase da relação entre humanidade e Deus a partir do momento que Deus começa a se relacionar conosco de uma forma mais profunda. O oitavo e último capítulo é o fechamento de um círculo. É quando todos os problemas causados pela humanidade finalmente recebem a cura necessária e voltamos ao cenário inicial da história, isto é, um jardim.

Este é um escrito que narra essa história constantemente por meio de elementos da natureza como jardins, semente, plantas, raízes, árvores, mas também de elementos sociais e culturais como cidades, torres nações, reinos. Entretanto, quero que os leitores entendam que eu não sou o autor desses elementos. Eles são elementos da própria história bíblica. Jardins e reinos são uma realidade da história que esse Livro Santo conta.
Por fim, espero que você veja a beleza dessa história (e não é uma beleza que eu criei) e que você, ao fim, se veja como personagem dessa história. Espero que você se sinta dentro dela e consiga visualizar os cenários descritos. Espero que sua leitura bíblica em seus devocionais, daqui pra frente, seja mais vibrante e cheia de cor. Que a Bíblia seja para você o que ela é de fato: uma história maravilhosa da qual eu e você fazemos parte se estamos na companhia de Jesus, o Messias. Seja bem vindo aos jardins, aos desertos, às cidades e ao percurso que Deus fez desde a eternidade até chegar em você. Deus te abençoe! Amém!

CAPÍTULO 1: JARDIM

Tudo começou dentro de um jardim lá no Éden. Deus foi quem plantou o jardim. Como último ato criador daquela primeira semana do universo Deus criou a humanidade, Adão e Eva, para que cuidassem do jardim. Eles eram jardineiros, faziam manutenção, cuidavam daquilo que Deus criou. Mas também eram cocriadores em certo sentido. Eles davam nome às plantas e animais, criavam coisas a partir do que já existia, de forma que o jardim tinha a “marca” deles também. Eles entendiam e aprendiam sobre o universo e tudo lá era perfeito.
É curioso que a bíblia hebraica começa com essa narrativa sobre a criação de Deus e sua relação com os primeiros humanos e que tudo isso acontece em um jardim. Hoje qualquer um de nós considera um jardim um pedacinho de terra com plantas, talvez árvores, mas que é meio que uma fuga, um espaço natural no meio do “mundo real” de casas, ruas asfaltadas cheias de carro e de prédios. O jardim hoje é algo anormal, mas na bíblia ele é o normal, o real, o ideal, o padrão. Aparentemente Deus pensou no jardim como esse lugar central da “cosmogonia” justamente porque tem todos os elementos importantes da obra maior que ele estava fazendo.

Cosmogonia é um termo usado para se referir a uma história sobre o início de tudo (cosmo = mundo e gonia = início).

Ele estava criando um mundo perfeito e queria que pessoas perfeitas cuidassem dele perfeitamente em uma relação perfeita entre Criador, criaturas e criação em geral. Deus visitava o jardim todos os dias. O jardim é esse lugar de harmonia, trabalho e relação. Creio que Adão e Eva trabalhavam no jardim antes de cometerem o primeiro pecado. O trabalho não é uma punição de Deus ao ser humano após o pecado. O trabalho é um privilégio que Deus dá ao homem: tomar conta de algo que é dEle. É por isso que Deus nos fez à sua imagem e semelhança (Imago Dei). O ser humano precisava ser uma imagem do Criador, um representante a altura, para que tudo fosse feito do jeito dele.
O jardim é um “microcosmo”, ou seja, um espaço embrionário a partir do qual toda a terra deverá ser povoada para que essa perfeição do Éden, cada vez mais, transborde e toda a terra se encha da glória do SENHOR (Hc 2:14). Até hoje muitos judeus acreditam que o jardim do Éden se localizava próximo ao Monte Moriá, em Jerusalém, onde Abraão depois quase matou a seu filho Isaque e onde foi construído o Templo de Salomão. É lá que hoje está o “Domo da Rocha”, o lugar mais sagrado do mundo para os judeus e que é dominado pelos muçulmanos.
É interessante notar que os jardins estejam presentes em outras cosmogonias e em outros momentos da literatura, tanto no contexto do antigo oriente — onde Gênesis foi escrito — como após isso e até hoje. Parece que a imagem genérica de jardim nos leva a pensar nisso: trabalho, harmonia e prazer. Entretanto, esse jardim especificamente é um espaço sagrado, não só em um sentido de religião, mas em um sentido mais amplo. Ele é o centro do mundo, é onde o mundo começa e onde está o sentido de tudo, o sentido da existência, a harmonia de tudo. Esse jardim também é o lugar a partir de onde esse sentido, essa ordem e essa harmonia poderão transbordar para o lado de fora. O Éden era apenas o começo de um trabalho. Deus queria cultivar não só esse jardim, mas queria que todo o mundo fosse como ele, cheio de sua glória, harmonia e beleza. Deus plantou um jardim em meio a um mundo que estava por fazer e nos chamou pra isso, para implantar — trabalhar — a ordem e trazer a beleza do Éden para todo o mundo. Assim, toda a terra seria visitada pela presença de Deus, que estaria de bem com a humanidade e a humanidade de bem com o Criador, com seus semelhantes e com o jardim. Tudo seria lindo.

Entretanto, e como todo mundo sabe, a história não foi bem assim. Haviam duas árvores especiais no jardim do Éden. Uma, chamada de Árvore da Vida, e a outra chamada de Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Ambas as árvores davam frutos, mas Deus proibiu os humanos de comerem do fruto da segunda árvore — a do conhecimento do bem e do mal. Supostamente, a Árvore da Vida dava imortalidade ao casal e mantinha a harmonia entre eles, Deus e a criação. A outra árvore, era o oposto. Comer do seu fruto faria com que a ligação entre a humanidade, a criação e Deus fosse cortada. Esse fruto tornava os seres humanos autônomos e independentes. A partir disso eles não seriam mais os jardineiros de Deus. Isso não significa dizer que eles estariam livres, mas que passariam a ser servos de si mesmos. O conhecimento do bem e do mal não é “sabedoria”, mas sim uma espécie de responsabilidade de julgar as coisas conforme lhe parecer. O ser humano passaria a resolver as coisas por si, sem perguntar ao criador do jardim como, o quê e por quê fazer.
Muita gente pensa que Deus não queria que os seres humanos comessem o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal porque ele queria sempre ter controle sobre os seres humanos, como se fossem seus fantoches. As pessoas veem aí uma fraqueza na bíblia: ah — pensam elas — a religião é realmente algo careta que só serve para impedir a gente de ser feliz! O que essas pessoas não percebem é que eles não foram os primeiros gênios a supor isso. Uma parte da criação — A Serpente — também usou esse argumento. O Diabo na forma da serpente disse a Eva que Deus estava mentindo para controla-los, que a fruta daquela árvore não faria mal algum a eles. O que as pessoas também não percebem é que a posição delas não é neutra. Se Deus — e a religião — é somente um ditador moralista então o diabo é que seria o mocinho da história. Se você não aceita o que Deus fez, você está ao lado do diabo, concordando com sua visão sobre os fatos. Deus seria um invejoso. É óbvio que isso não faz sentido.
Outras pessoas pensam que acharam outra incoerência da bíblia — que para eles, aliás, é apenas um conto de fadas. Essas pessoas questionam por que Deus teria plantado a árvore do conhecimento do bem e do mal se ele queria que o ser humano fosse sempre bonzinho? E mais, porque ele deixou uma serpente diabólica vagando pelo jardim que supostamente era perfeito? Essas perguntas realmente me pareciam gravíssimas quando eu tinha quinze anos e me considerava um ateu super evoluído. Novamente, o que essas pessoas — e eu em 2006 — não percebem é que esse tipo de questionamento é contraditório para quem estava criticando o Deus ditador que gosta de controlar fantoches. Se Deus não fizesse a serpente e a árvore do conhecimento aí sim ele estaria tirando do alcance da humanidade qualquer tentativa de investigar a fundo o que seria a “verdade”. Mas Deus criou seres a partir da sua imagem e da sua semelhança. Eles eram como monumentos que representavam ao Criador — que é Espírito — em carne e osso. Como seres criados à imagem e semelhança de Deus eles eram livres e responsáveis por seus atos. Deus então planta uma árvore de vida para que eles mantenham a dependência e a comunhão com o Criador e outra árvore que dava escolha aos seres humanos sobre qual lugar eles queriam ocupar no mundo. Jardineiros de Deus ou… qualquer outra coisa que eles quisessem. Só haveria uma forma de essa relação ser verdadeira, isto é, se ela fosse fruto de um amor mútuo; se os humanos escolhessem ficar com o Criador.
O jardim é uma realidade complexa. É uma realidade “relacional”, na qual a harmonia é fruto de trabalho, dedicação e, principalmente amor. Deus poderia simplesmente estalar os dedos e criar todo o universo com a criação pronta como um mágico. No entanto, a narrativa de Gênesis coloca Deus como um trabalhador. Ele trabalha por seis dias. Ele cria o universo e se depara com um completo caos. O SENHOR não estala os dedos. O SENHOR arregaça as mangas e pega as ferramentas. Ele cria os astros, cria o firmamento, o céu para separar as águas acima e abaixo do firmamento, a terra seca. Deus “constrói a vida” e povoa o mundo que criou. Ele cria animais de terra firme, de água e os que voam. Deus trabalha até que tudo esteja em ordem.

O modelo que Gênesis narra na criação da Terra é totalmente diferente de como a Terra é de fato. Gênesis descreve a terra como centro de tudo, com dois astros girando ao seu redor (sol e lua). Em Gênesis e na bíblia em geral a terá é plana, cercada de águas e tem uma proteção invisível acima dos céus chamada de firmamento. O céu seria azul porque acima do firmamento tem um monte de água, de onde vem a chuva. No Dilúvio de Noé Deus abriu as comportas do firmamento e de lá veio a água que cobriu toda a terra. Gênesis descreve a terra assim porque esse era o modelo mais aceito naquele tempo na Região do oriente antigo, com base na observação e narrativas existentes. Não pretendo entrar em discussões científicas neste escrito, mas este é um fato que precisa ser pontuado: Gênesis não faz uma descrição científica da criação, mas uma descrição narrativa. Deus se “acomoda” à narrativa dos povos daquele tempo para comunicar a história/narrativa que é central, ou seja, que Ele é o criador de tudo o que existe, inclusive dos seres humanos e que Ele (Deus) não tem início, não foi criado. Posso afirmar isso com segurança, mas qualquer coisa além disso eu deixo para os teólogos, filósofos e cientistas profissionais discutirem.

Ele cria o homem e a mulher justamente para isso, manter a ordem que ele criou. É apenas depois de garantir que tudo estava “muito bom” que Deus descansa. É o fim de uma semana de muito trabalho e, no fim, ele deita, contempla o que fez, sente prazer e se deleita. Esse é o seu Shabat (descanso). O descanso é algo tão bom que ele passará a institui-lo como uma coisa central na sua relação com a humanidade. O descanso é sagrado, é uma forma de ter comunhão com Deus e sua obra e com a obra de nossas próprias mãos. Deus não nos fez apenas para trabalhar ou descansar. Ele nos fez para experimentar o prazer que a combinação entre trabalho e descanso pode nos dar. Plantar e colher. Colher e comer. Trabalhar e dormir. Construir e ver funcionar. Projetar e contemplar. Suar e relaxar. Deus trabalhou e então parou para usufruir, “comer” e curtir daquilo que produziu. O alimento de Deus é ver seus representantes oficiais (humanos) inventando o nome dos animais, das plantas e descobrindo quais dela servem para fazer chá ou fazendo limonada do limão, ou ainda construindo casas, organizando as cores e os sons e compondo belas músicas e pinturas, rampas de acesso para cadeirantes, criando o desodorante. Enfim, usufruindo da vida em plenitude.
Deus criou tudo desse jeito, inclusive com direito a uma “árvore da perdição” porque deu uma função ao homem: manter a ordem. Esse trabalho passa também por enxotar a serpente, afinal aparentemente ela é um animal com instintos imprevisíveis, é astuta e ardilosa. Mas ela tem uma função no jardim, testar o quão responsáveis Adão e Eva estão sendo em seu serviço. A função dela é garantir que Adão e Eva, a cada novo dia de trabalho, impediriam a deterioração do jardim. Eles deveriam zelar para que a árvore do conhecimento do bem e do mal não fosse tocada e para que animais peçonhentos fossem afastados. Deus não criou o mal, ele criou o trabalho, a harmonia e a responsabilidade. O homem é que, sendo irresponsável, trouxe o caos e o conflito à criação. Deus não queria que a paz, a harmonia, o amor e a beleza fossem um produto sem gosto e sem cheiro que ele criou a partir do estalo dos seus dedos. Deus queria que o homem experimentasse o prazer de sentar na cadeira de embalo após um dia ou uma semana de trabalho e dizer “eita, que semana! Deixa eu tomar um belo de um café, ler um livro, ou ouvir aquele disco, ou namorar um pouco com a esposa, ou brincar com os filhos”. Enfim. Deus queria que o trabalho fosse prazeroso, que os frutos do trabalho — a harmonia, a beleza — gerasse amor. Amor entre nós e o SENHOR, entre nós e o próximo e aos bons frutos que ele nos deu para nosso bem.
Adão e Eva preferiram reescrever a história a partir de suas próprias imaginações autônomas. Eles desconsideraram a necessidade que tinham do Criador, a fonte da paz, da harmonia, da beleza e do amor. Acharam que por conhecer essas coisas boas — que vinham de Deus — seriam capazes eles mesmos de continuar produzindo isso perfeitamente. Só que não! Ao comer aquela fruta eles cortaram o tubo de oxigênio, o cordão umbilical.

Eles comeram do fruto proibido e abordados por Deus, seu estado de fraqueza moral já se mostrava avançado. Adão culpa Eva — e a Deus indiretamente. Eva culpa a serpente. Eles não se entendem mais. Eles tentam se safar, tentam restaurar a paz. Decidir viver sem Deus não apagou o fato de que Ele existe, de que a realidade existe, de que o mundo (o jardim) ainda é dEle. Não dá para ser ateu quando Deus vem e diz “estou decepcionado com vocês”. Eles sentem vergonha e tapam suas partes íntimas com folhas; um uso vergonhoso para as plantas perfeitas de Deus. Eles se sentem vulneráveis. Eles têm medo de serem explorados um pelo outro. Eles têm conhecimento do bem e do mal, mas agora sua condição de produzir o bem lida diretamente com os impulsos de fazer o mal. Divididos um contra o outro e contra o mundo, surge o extinto de autopreservação e de egoísmo. Cada um vai passar a pensar no que fazer para se proteger. Vão chegar à conclusão de que a sobrevivência pertence ao mais forte. Surgem as formas de dominação, de agressão, de violência.
Toda a bagunça que o ser humano cria parece ser uma tentativa de criar um mundo cheio de harmonia, paz e amor, só que de acordo com seus desejos individuais e mesquinhos. Eles não querem mais ser os jardineiros, aqueles que servem. O ser humano, querendo ser Deus, passa a querer criar um novo mundo para si, para ser servido. E não é para menos, eles sabem que tudo agora será muito mais difícil. Tudo agora parece conflituoso. O mundo deixa de ser o lugar do afeto e da harmonia e passa a parecer com um território constantemente em disputa.

A essa altura no relato de Gênesis, Deus diz que Eva teria partos complicados e dolorosos. A ideia que a bíblia passa é que o ato de dar à luz a um novo ser criado à imagem e semelhança de Deus é em si mesmo uma missão gloriosa e que fazia parte dos planos originais do SENHOR de espalhar seu jardim glorioso por todo o mundo. Por isso, ao criar os seres humanos ele já ordenara que eles fossem fecundos e se multiplicassem povoando a terra. Originalmente não havia nada feio no ato de parir bebês. Contudo, uma vez que a ligação espiritual entre a jardineira Eva e seu criador foi cortada, muito dessa beleza se perdeu. As dores e o enorme sangramento fariam com que o parto — este ato de proliferação da vida — estivesse para sempre flertando com a morte, com o risco de aborto, de uma hemorragia ou de um bebê doente. Ao flertar com a morte, o pecado estaria sempre à espreita. É por isso que, posteriormente na história de Israel, as mulheres que tivessem dado à luz estariam, por um determinado tempo, impedidas de ir ao templo e, por isso, eram consideradas impuras. O Tabernáculo — onde a presença de Deus habitava — era um lugar tão puro e tão santo (como o jardim) que nada associado à morte e ao pecado deveria adentrar suas portas.
Além disso, o SENHOR também anuncia que Eva ficaria completamente sujeita e vulnerável aos mandos e desmandos de Adão, seu companheiro. Eva foi feita para ser uma “auxiliadora idônea”, uma cooperadora na missão. Eu não creio que Deus criou a mulher inferior ou como subalterna do homem. Creio que ele os criou diferentes e complementares. Creio que os atributos dos seus corpos foram dados por Deus pensando exatamente na função que tinham como jardineiros. O homem, com porte físico mais forte, seria o guardião e protetor do jardim e da família. Isso não é ser melhor, é ter uma função e as “ferramentas” adequadas. A mulher, embora mais frágil, tem atributos que a colocam em destaque. Suas habilidades são elogiadas e louvadas na bíblia (Pv 31). Sua capacidade de administrar, cuidar, criar vida, de reproduzir, de multiplicar é louvável. Entretanto, a mulher foi criada com um corpo frágil, embora, isso não significa que ela tenha sido criada inferior ou subjugada. Novamente, são características “funcionais”. Acontece que, agora, com a queda, essa sua condição geraria vulnerabilidade. Mulheres não são vulneráveis em si mesmas, mas por estarem cercadas de homens maus. A mulher grávida é duplamente vulnerável. Homens fortes poderiam defende-las, mas homens que são fortes e maus são um risco enorme à sua integridade. Eva agora experimentará o cargo de estar sujeita à violência que o homem é capaz de lhe impor (machismo, estupro, feminicídio, etc.).

Aí Deus chama o homem. Adão ouve que seus dias de trabalhos serão amargos. O solo da terra, seu amigo antigo, não cooperaria mais com ele. Ao invés de produzir somente os frutos interessantes, ele produz espinhos, cardos e abrolhos. Ele como o jardineiro por excelência, o “varão”, tem a responsabilidade de pegar a inchada e encarar esse trabalho pesado em prol do sustento de sua esposa e futuros filhos. O trabalho e a vida familiar se tornam algo bem menos prazeroso e bem mais cansativo. Ser mais forte parece um peso agora. Na verdade, ele sequer tem controle sobre essa força. Ele passa, cada vez mais, a usar a força — que lhe foi dada para ser usada em prol do jardim e da família — em seu próprio benefício e contra o mundo todo. Com o tempo o homem cria gosto pela violência e sangue que seus músculos são capazes de gerar.

Há algumas fontes que dizem que a palavra trabalho deriva de uma palavra em latim (tripalium) que seria um instrumento de tortura. Isso expressa a visão negativa com a qual olhamos para o trabalho.

O homem também sofre com a desvirtuação da sua mulher. A bíblia alerta a todo tempo sobre a mulher imoral, aquela que vive de sensualizar, perverter e enganar os homens fracos e desviados. As mulheres, talvez como forma de defesa, aprenderam a “arte” da sedução e conseguem dominar homens fortes fisicamente, mas que são crianças em termos de força moral e espiritual; pense em Sansão (que era capaz de matar um leão e um urso) sendo dominado como um gatinho por Dalila. Em resumo, a família, as relações, o trabalho, tudo isso agora deixou de ser o porto seguro no qual a humanidade tem prazer e opera a obra de Deus de levar sua glória a toda a terra. A família, as relações sociais e o trabalho após a queda têm a marca da serpente: a enganação, a mentira e a violência, por todo o lado.

Entretanto, a própria serpente não saiu impune nisso. Ela cumpriu seu papel dado por Deus. Mas ela também não é um fantoche. Ela gostou de ser má. Ela foi condenada a passar a eternidade rastejando comendo o pó da terra em inimizade com toda a humanidade — menos com esses encantadores de naja e biólogos que amam cobras. Mas há uma última fala nesse contexto. Haveria um descendente da mulher que, um dia, no futuro, seria mordido mortalmente pela serpente, mas que, ao mesmo tempo, iria esmagar a cabeça da serpente pisando-a e pondo um fim em suas travessuras. Aqui, muitos veem uma profecia sobre Jesus, mas eu prefiro passar e seguir focado no jardim que agora está uma bagunça. No último capítulo falaremos sobre isso.

Adão e Eva, que estavam vestidos com plantas, agora recebem de Deus uma roupa feita de pele de animal. Isso significa que um animal foi morto. É a primeira vez que sangue e morte aparecem de forma concreta aqui. Adão e Eva já estão “espiritualmente mortos”, ou seja, separados de Deus. Entretanto, antes que eles morram fisicamente um animal precisou morrer, de fato, para tapar a nudez deles. Muitos estudiosos aqui também veem um elemento profético que aponta para Jesus, o qual seria simbolicamente o animal abatido para tapar a nudez (pecados) da humanidade com sua pele. O fato é que este pobre animal não será o último a morrer. O sangue, a carne, a morte, será presente na nova realidade criada pelos humanos. Criados como veganos, eles irão experimentar a dura realidade de que, para viver, terão que matar animais. Sim, porque no mundo dos espinhos, cardos, abrolhos, de trabalho pesado e de saúde em deterioração a fartura de cereal e de boas frutas nem sempre está garantida. Comer carne é uma necessidade do mundo pós pecado. Que bagunça! Não era pra ter sido assim.

Tudo isso é resultado dos laços cortados e do caminho que quiseram trilhar nossos primeiros pais. Nós estamos unidos a eles não só geneticamente, mas moral e espiritualmente. Nossos destinos foram traçados ali, uma vez que Deus expulsou Adão e Eva do Jardim no Éden e pôs dois anjos armados na porta do jardim para impedir que o casal entrasse e comesse novamente da Árvore da Vida e vivessem eternamente como mini deuses rebeldes. Adão e Eva saem do jardim, mas aparentemente o jardim não sai totalmente deles. Como já dito antes: Adão e Eva caíram, mas não se tornaram ateus. Deus existe e agora ele está decepcionado e irado com a humanidade rebelde. O que nós podemos fazer para tentar agradar ao criador?
Mais adiante na história passamos a conhecer os filhos de Adão e Eva, Caim e Abel. Eles já aparecem trabalhando apresentando ofertas a Deus. Cultivo e Culto sempre estiveram ligados na história da humanidade. Eles oferecem o fruto dos seus trabalhos, parte da colheita e parte do rebanho. Eles estão tentando se comunicar com o Criador dizendo “o que temos produzido, vem de ti” e “toma essa parte de volta como forma de gratidão e reconhecimento”. Eles devem ter ouvido dos seus pais que Deus frequentava o jardim para tomar um chá e bater um papo com eles e que as coisas haviam mudado muito. Então, Caim e Abel convidam Deus para comer um pouco daquilo que eles produziram. Eles estão tentando se religar a Deus e (re)produzir a harmonia, a beleza e o amor, mas isso parece ser difícil, para não dizer impossível.

É dessa palavra religar (em latim, religare) que vem a ideia básica de uma religião, ou seja, refazer a ligação entre os homens e Deus.

Caim não oferece o melhor, ele quer o melhor para ele. Só que nem tudo está perdido. Abel, homem justo, apresenta seu melhor e Deus “come” sua oferta. Apesar da queda, a Imagem de Deus está preservada em todos os homens, até em Caim, mas se torna mais clara em homens como Abel. A humanidade está dividida. Essa será uma coisa recorrente daqui pra frente. Há pessoas com quem Deus se relaciona e outras as quais ele rejeita. Mas Caim não aceita que seu irmão seja o melhor. Ele quer ser o melhor. Caim mata seu irmão. Ele elimina o que não é bom aos seus olhos. Essa é a vida fora do jardim e o que Gênesis narra daqui para frente é isso. Violência e novas organizações sociais que surgem e se estruturam sem considerar a missão e a ordem primordial da humanidade, ou seja, fazer a glória de Deus transbordar por toda a terra.

A questão, para finalizar, é: como é que a glória do SENHOR irá encher toda a terra se os trabalhadores só produzem problemas? Deus teria desistido do plano de fazer deste mundo todo um lindo jardim cheio de amor, harmonia e beleza a partir do trabalho e do descanso? Ou será que após o problema enfrentado com os jardineiros Deus vai reorganizar a estratégia e seguir firme no projeto? Antes de ir ao próximo capítulo eu posso adiantar: Deus faz questão do jardim. Ele não desiste!

Continuaremos esta história no próximo capítulo.

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Diego Montenegro

Esposo. Cristão Reformado. Mestre em Geografia e professor. Tentado a mostrar isso em palavras {1 Pedro 3:15}