Kenosis: a divisão politicopartidária é uma doença a ser tratada na igreja

Diego Montenegro
8 min readOct 30, 2022

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Esse texto tem um simples objetivo: demonstrar — com base na carta do Apóstolo Paulo aos Filipenses — que a divisão políticopartidária na igreja é uma doença. Apesar de ser simples, entendo que esse objetivo é ousado nos tempos polarizados em que vivemos, contudo, isso ao invés de me desencorajar, encoraja ainda mais.

Devemos então começar por observar a epístola bíblica que serve de base para o nosso argumento. Vamos ao texto.

CAPÍTULO 1: COOPERAÇÃO NA OBRA

No capítulo primeiro há uma coisa muito clara que se destaca. Paulo é grato a Deus pela solicitude dos filipenses. Observem esse roteiro:

a) Paulo (e Timóteo) se identifica como ESCRAVO (verso 1): provavelmente ele está fazendo uma referência ao seu ministério, sua entrega a Cristo, mas também à perseguição e prisão. Paulo chega a dizer que ainda que deseje mais estar com Cristo (morrer), pelo bem dos filipenses ele entende que deve permanecer vivo para SERVIR (versos 12 a 24).

b) Paulo se alegra porque os filipenses são seus COOPERADORES (versos 2–11 e 27–30: Paulo está feliz tanto porque os filipenses se tornaram parceiros da obra evangelística contribuindo financeira e moralmente com o apóstolo, quanto pelo fato de que esses crentes tem demonstrado progresso em sua fé como comunidade cristã que deixou o antigo modo de viver.

Paulo está dizendo indiretamente o seguinte: O CENTRO DA IGREJA É O EVANGELHO! O motivo pelo qual ele está preso é o evangelho. O motivo pelo qual os filipenses viraram amigos amados dele é O EVANGELHO. Igreja não é um clubinho em que nos unimos porque temos preferências pessoais parecidas. Igreja não é sobre afinidade, é sobre COMUNHÃO. Igreja é sobre o fato de que APESAR de nossas diferenças temos recebido do mesmo pão e do mesmo vinho, isto é, temos o mesmo Espírito.

2. CAPÍTULO 2: ESVAZIANDO-SE DE SI E ENCHENDO-SE DE CRISTO

Então, chega o capítulo 2. Paulo diz então que se eles se tornaram PARTICIPANTES da Obra de Cristo, Jesus deve ser absolutamente seu modelo. Paulo, esse Escravo de Jesus diz que uma forma de os filipenses imitarem a Jesus é abrindo mão de suas discordâncias

Então completem minha alegria concordando sinceramente uns com os outros, amando-se mutuamente e trabalhando juntos com a mesma forma de pensar e um só propósito. Não sejam egoístas, nem tentem impressionar ninguém. Sejam humildes e considerem os outros mais importantes que vocês.
Não procurem apenas os próprios interesses, mas preocupem-se também com os interesses alheio” (Fp 2:4).

O argumento de Paulo é simples: se estamos todos cooperando pela obra de Cristo, se somos todos conservos no anúncio do Evangelho, não DEVEMOS nos dividir por interesses próprios. Meus interesses próprios não devem ser impostos nas minhas relações com meu irmão. Devo considerar que a opinião do meu irmão é mais importante que a minha e, por isso, zerar minha combatividade. Se o assunto não é O EVANGELHO, não há espaço para subdivisões. Paulo já disse em 1:15–18 que há pessoas que tem anunciado a Cristo com motivações ruins, mas que o que realmente importa é a mensagem: Cristo. Assim, toda divisão entre crentes que não tem a ver com a verdade da fé é incoerente com essa mesma fé. Vejamos como Paulo tratou isso na prática com a igreja de Corinto:

porque ainda são controlados por sua natureza humana. Têm ciúme uns dos outros, discutem e brigam entre si. Acaso isso não mostra que são controlados por sua natureza humana e que vivem como pessoas do mundo? Quando um de vocês diz: “Eu sigo Paulo”, e o outro diz: “Eu sigo Apolo”, não estão agindo exatamente como as pessoas do mundo? 1Coríntios 3:3,4

Nesse primeiro exemplo vemos que Paulo censura as divisões em Corinto pelo fato de que a briga era fútil (partidarismo teológico). Paulo e Apolo são ambos servos de Cristo, logo, a briga é tola.

Primeiro, ouço que há divisões quando vocês se reúnem como igreja e, até certo ponto, eu o creio. Suponho que seja necessário haver divisões entre vocês para que se reconheçam os que são aprovados! 1 Coríntios 11:18,19

Já nesse segundo exemplo Paulo consegue ver alguma utilidade prática nos partidarismos. Essas divisões estavam segregando os crentes pobres em Corinto, fazendo com que nos banquetes e nas ceias eles fossem desprezados. Claro que partidarismo continua sendo algo indesejável, mas a partir do momento que os ricos se comportam desse jeito, ficaria claro que eles estão em pecado. Isso prova quem é de Cristo ou não.

Assim, o ideal que a igreja persegue é a UNIDADE NA DIVERSIDADE. Ricos e Pobres, fãs de Apolo e Paulo, todos devem cear juntos. Suas divergências particulares (sobre assuntos que não são a verdade de Cristo) não podem ser usadas para dividir o corpo de Cristo.

Voltando a Filipenses, Paulo continua no capítulo 2 a argumentar que esse ato de abrir mão de suas preferências pessoais para SERVIR é algo Cristão, porque é algo próprio do Cristo. Jesus se esvaziou de si para servir. Aqui há algo importantíssimo, irmãos. O termo grego para “se esvaziar" (2:7) é KENOSIS. Esse texto tem sido uma peça teológica alvo de muito trabalho dos interpretes. O que significa Cristo, a segunda pessoa da trindade SE ESVAZIAR? Bem, eu não vou aqui dar pitacos teológicos. Vou dizer algo que deve ser um senso comum sobre esse texto: Cristo abre mão deliberadamente de algo que é seu por direito. Imaginem isso: O Filho de Deus, a Segunda Pessoa da Trindade, se esvaziando para servir a igreja. Agora pense: qual opinião sua não é INFINITAMENTE menos importante do que qualquer coisa de que Cristo tenha se esvaziado? Qual opinião sua você tem colocado como algo tão importante que te impede de se esvaziar em prol do objetivo maior que é a comunhão? Isso deve nos fazer pensar. Há alguma coisa (que não seja sobre a verdade de Cristo) pela qual vale apena eu entrar em conflito aberto com meus irmãos?

3. CAPÍTULO 3: QUEM EU ERA E QUEM EU SEREI

No capítulo 3, Paulo diz que TODOS os crentes precisam estar focados e alegres em Cristo. Não há nada em nós que seja motivo de orgulho. Entre os versos 3 e 16 Paulo narra sua jornada em que abandonou o orgulho judaico e seu zelo legalista. Paulo fala de como tudo aquilo que era precioso pra ele (seu patriotismo, partidarismo e legalismo) agora significa nada. Ele chama tudo isso de fezes porque Cristo passou a ser tudo pra ele. A partir do verso 17 ele passa a conclamar e advertir a igreja que imite sua postura de esvaziamento, como ele próprio está imitando o esvaziamento de Cristo. O motivo — diz Paulo no verso 20 — é que, no fim, todos nós crentes temos raízes em um outro mundo, isto é, o Reino de Cristo que ainda virá. Logo, nossa cidadania é comum. O fariseu, o saduceu, o zelote, o crente de esquerda, de direita, são todos cidadãos do reino, logo, devem se esvaziar de seus farisaísmos, esquerdismos e direitismos para serem SIMPLESMENTE CRISTÃOS. Veja que bonito. Aqui a gente se esvazia disso e no fim (verso 21) Deus vai nos revestir de um corpo glorificado para viver em unidade perfeita para sempre. Abra mão de si, que Cristo te dá algo dele. Irmãos, isso é seríssimo: o esvaziamento de hoje é um investimento na glorificação futura. Não seremos feitos um com Cristo no último dia se não começarmos a nos evaziar de nós mesmos e nos encher de Cristo HOJE.

4. UM CORPO, UMA MENTE, UM CORAÇÃO

No Capítulo 4 Paulo aplica toda essa teoria à prática: Duas irmãs estavam em conflito aberto. Evódia e Síntique, ambas crentes, ambas lutando pelo evangelho, mas achando que a outra estava errada em algum assunto particular. O que Paulo diz? RESOLVAM ESSE DESENTENDIMENTO. Na versão Almeida Revista e Corrigida diz “que sintam o mesmo no Senhor” na Revista e Atualizada lemos “pensem concordemente no Senhor”, na Nova Versão internacional lemos “vivam em harmonia no Senhor”. A ideia é: NÃO HÁ ESPAÇO PARA VOCÊS VIVEREM SE DEGLADIANDO. A igreja é um corpo, corpo de Cristo, com uma só mente e um só coração. A discórdia dessas irmãs não é útil para a obra Cristã pela qual as duas militam! Logo, elas devem abandonar isso. Claro que é difícil, claro que é complicado imaginar alguém engolindo seco suas certezas, contudo, é o que Cristo fez, é o que o Apóstolo fez, é o que toda a igreja deve fazer.

Paulo termina esse capítulo como começou: se alegrando porque os Filipenses são capazes de serem cooperadores do ministério apostólico e do anúncio do Evangelho. Paulo recebe esse apoio financeiro deles, mas diz que no fim não é o dinheiro que mais importa, mas a fonte da generosidade, isto é, A COMUNHÃO. Quando os filipenses enviam recursos materiais e humanos a Paulo eles estão ajudando alguém que consideram família, carne da sua carne. A igreja é isso. Logo, Evódia e Síntique, cristãos progressistas e conservadores não devem brigar, não devem deixar que os desentendimentos pessoais afetem a comunhão.

CONCLUSÃO

Escrevo esse texto em 30 de outubro de 2022 enquanto as urnas eletrônicas estão sendo apuradas para revelar o resultado das eleições presidenciais do Brasil. Ainda não sei quem será o presidente eleito. Sei que apoiadores dos dois candidatos que creem em Cristo não podem deixar que suas preferências políticas sejam confundidas com sua fé. Sei que esses irmãos não podem deixar que sua comunhão (aquilo que o evangelho uniu) seja rompido pela insistência de nossos partidarismos pecaminosos.

Penso que se observarmos nossa necessidade de esvaziamento e passamor a militar pela unidade cristã, o amor irá emanar para o mundo. O mundo quebrado poderá provar de Cristo e também ter restauração por meio do evangelho. Uma igreja quebrada não restuara o mundo, ou, como nosso Senhor Jesus disse: um reino dividido não subsiste (Mt 12:25).

Eu, como presbiteriano, louvo a Deus pela decisão do nosso Supremo Concílio que em 2022 aconselhou que o Ministro Presbiteriano deve “conservar-se neutro numa questão em que os membros da Igreja estão divididos”. Oro a Deus que os ministros e demais irmãos que não tem observado isso — e que acabam por inflamar partidarismos — se arrependam e venham a público reestaurar a comunhão na igreja.

Não sei quem será o chefe de estado do Brasil daqui pra frente, mas sei quem está sentado no trono de glória à destra de Deus. É Cristo.

Um dia depois disso tudo (31/10/22) se dará a comemoração dos 505 anos da reforma protestante. Que possamos repensar nossas práticas e reatar laços rompidos por partidarismo. Que possa haver arrependimento em nosso meio. Que haja humildade para pedir desculpas a quem ofendemos ou segregamos. Que haja humildade para liberar perdão a quem nos maltratou. Que no fim possamos olhar para nossas igrejas e ver de forma clara nela aquilo que Cristo fez no mundo espiritual, isto é, a união espiritual de todos em um só corpo.

Que o Senhor tenha misericórdia da Igreja brasileira.

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Diego Montenegro

Esposo. Cristão Reformado. Mestre em Geografia e professor. Tentado a mostrar isso em palavras {1 Pedro 3:15}