NEC TAMEN CONSUMEBATUR: A Sarça Ardente e a Identidade Presbiteriana
1. ORIGEM
Se você nunca leu esta frase em latim — “Nec tamen consumebatur” — deve estar estranhando achando que este texto trata de algo complexo e restrito a um seleto grupo de intelectuais. Contudo, não é bem assim. Na verdade o objetivo deste texto é esclarecer alguns fatos e curiosidades sobre o símbolo e imagem visual do presbiterianismo em geral e, quem sabe, nos trazer uma reflexão sobre quem somos enquanto presbiterianos.
Nec Tamen Consumebatur significa algo como “No entanto, não se consumia”. Isso faz referência ao episódio de Ex 3:2 quando Moisés teve aquela visão sobrenatural da sarça ardente. A sarça é uma planta arbustiva desértica, logo, naturalmente seca, mas Moisés percebeu que a sarça ardia em chamas, contudo não se consumia (destruía). O que isso tem a ver com o presbiterianismo?
Ocorre que conforme deu-se o desenvolvimento do presbiterianismo dentro das igrejas reformadas essa frase em latim juntamente com a imagem da sarça ardente passou a ser utilizada como “lema” e “logomarca”, se é que podemos assim chamar.
Ao que tudo indica os primeiros registros do uso desse lema e logomarca nas igrejas presbiterianas remontam à Escócia ainda no século XVII, provavelmente no ano de 1691. Posteriormente a Igreja da Escócia (que é presbiteriana) oficializou esse símbolo e frase como sua identidade visual.
A Kirk, como era chamada a igreja presbiteriana mãe, “ditou tendência” e ao redor do mundo diversas igrejas presbiterianas aderiram a essa identidade. Abaixo, alguns exemplos:
Evidentemente nem todas usam a combinação do lema com a logomarca de forma tão clara, mas o traço da igreja mãe escocesa é perceptível.
2. A SARÇA DA IPB
No Brasil isso não foi diferente. Como presbiterianos que foram plantados pela Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, herdamos muito do presbiterianismo europeu, inclusive a identidade visual. Contudo, a adoção dessa identidade visual não foi imediata.
Ao que parece a IPB não tinha identidade visual até o ano de 1951, um ano após a primeira Constituição ser aprovada em Supremo Concílio (guardem isso em mente). O texto do documento SC-51–038 da IPB resolve:
Adotar como timbre da Igreja Presbiteriana do Brasil, timbre este constante de uma sarça ardente, com a inscrição “NEC Tamen Consumebatur”, Timbre este usado por muitas Igrejas Presbiterianas, e também por nossa Casa Editora. Resolve-se que na barra se leia — Igreja Presbiteriana do Brasil”
O timbre, ou, logomarca, de 1951 vigorou por muitos anos com poucas variações. Em 1995 a logomarca mais utilizada eram estas:
Foi justamente no ano de 1995 que as coisas começaram a mudar. Aparentemente havia certo descontentamento de alguns para com o timbre vigente, e falava-se em uma necessidade de atualização. Ainda em 1995 o Jornal Brasil Presbiteriano divulgava um concurso para substituir a logomarca:
Apesar do sucesso de participação o concurso parece não ter conseguido chegar a um vencedor. O conselho de marketing da IPB era o responsável por verificar os trabalhos e escolher o vencedor.
Apesar de tudo, não houve mudança em 1995, mas em 1996 a situação foi diferente. Em uma Comissão Executiva (CE) o conselho de marketing deliberou e terminou por substituir a antiga sarça pela nova (uma sarça verde com uma pombinha branca ao centro) e sem o lema “Nec Tamen Consumebatur”. O
CE-SC/IPB-96–005 — Quanto ao Doc. 187 — Proposta da Logomarca — Oriunda do Conselho de Comunicação e Marketing, a CE-SC/IPB Resolve: Aprovar a proposta em seus termos, ad-referendum do SC/IPB”. Essa decisão não foi unânime.
Atenção para o final: A decisão não foi unânime, logo, já poderíamos esperar conflitos por conta dessa decisão.
Em 1997, a Comissão Executiva por meio da Resolução — CE-SC/IPB-97–120 DOC. LXVI — Quanto ao Doc. 145, encaminhava a mudança para a prática:
“Proposta do Conselho de Comunicação e Marketing sobre regulamentação e Aplicação da Logomarca em suas diversas utilizações, como: boletins, papéis, cartões, bandeiras, faixas, carros, et. nas igrejas locais, a CE-SC/IPB resolve determinar: Que os sínodos encaminhem para os Presbitérios as decisões deliberadas pela CE-SC/IPB sobre a matéria e que os Presbitérios, por sua vez encaminhem para as igrejas sob sua jurisdição; Que a logomarca em bandeiras, impressos e instituições da Igreja seja utilizada dentro do prazo máximo, até dezembro do ano em curso; que o CCM providenciem diquete do material e coloque à disposição das igrejas, em como, atender às igrejas que não tenham condições de acesso à comunicação e marketing”.
Apesar de a mudança estar encaminhada a situação estava longe de ser resolvida. No mesmo ano de 1997 dois problemas foram apontados na mudança da logomarca. O 1) Seria o fato de a decisão não ser unânime e o 2) o fato de que uma decisão tomada numa CE (Comissão Executiva) não poderia desfazer assim uma decisão original tomada num SC (Supremo Concílio).
Registra-se que houve voto contrário e voto de dissentimento contra a decisão Doc. CE-SC/IPB-97–176 Nos seguintes termos:
“ uso de uma "logomarca" que substitui simbolo histórico de nossa denominação, alterando-o substancialmente, e que esta dita "logomarca" é, no mínimo, altamente discutível em seu aspecto artístico, símbolo dissentimento, lembrando que nossa visão Reformada de Igreja nos autoriza a dizer que "os concílios erram" e que esta Comissão Executiva nem concilio é. Sublinhando ainda, que alguns crendo assim, ainda hoje, tem desrespeitado decisões acertadas do Supremo Concílio de nossa Igreja, que deveriam efetivamente serem acatadas não o fazem - Rev. Ludgero Bonilha Morais
Nesse momento iniciou-se uma “disputa jurídica”. Os que subscreveram o voto de dissentimento afirmavam que a nova logomarca além de ser visualmente inadequada à IPB, por “parecer marca de empresa”, também teria sido alterada num ato falho do CE-97 que teria legislado sobre o que estaria fora do seu domínio.
Do outro lado, os responsáveis pela mudança no CE-97 defendem a mudança por uma necessidade de atualização e afirmam legislar dentro de suas atribuições.
O fato é que essa disputa veio a se estender até o ano de 2006, ou seja, 10 anos após o início de tudo. No Supremo Concílio de 2006 deu-se o episódio final dessa disputa, dando parecer favorável ao voto de dissentimento. Reconheceu-se em 2006 que a decisão do CE-96 e sua homologação no CE-97 foram irregulares. Observe:
SC-IPB-2006 Doc. CXXXVIII - Quanto ao Doc. 078 - Ementa: Logomarca da IPB - Proposta de nulidade de decisão que efetuou a mudança, voltando a viger a Sarça legalmente aprovada em 1951.
Mas se o SC-IPB-2006 reconheceu a nulidade das mudanças, porque não foi recuperada a antiga sarça e o dizer NEC TAMEN CONSUMEBATUR? A resposta é que há uma ressalva nessa decisão do SC-IPB-2006:
Considerando: 1) Que as decisões CE-SC/IPB 96-005 Doc. V e CE-SC/IPB 97-120 Doc. LXVI, respectivamente, criadora e regulamentadora da logomarca da IPB, foram homologadas pela resolução SC/IPB 99 E - Doc. XVIII; 2) Que uma mudança ou retorno a logomarca de 1951, quase dez anos após a implementação da atual, causará enormes transtornos financeiros e organizacionais, O SC-IPB-2006 RESOLVE: Manter a atual logomarca da IPB, estando o seu uso regulamentado pelo regulamentado pelo Manual de Identidade Visual da IPB.
Em resumo, o que ocorreu é que, apesar de se reconhecer os problemas envolvendo a mudança de 1996/97, a Igreja decidiu não retroceder por conta do alto custo financeiro e dificuldade organizacional que envolveriam tais mudanças. Além disso, o Supremo Concílio de 99 teria “legalizado” as mudanças do CE-96/97, o que levaria a uma outra disputa. Assim a sarça verde com a pombinha e sem o NEC TAMEN CONSUMEBATUR permaneceu.
O Rev. Onezio Figueiredo em sua apostila de estudos sobre A Constituição da IPB tece o seguinte comentário:
1 — Deveria constar, no primeiro artigo, a declaração de que a Igreja Presbiteriana do Brasil, pela sua nova constituição, adotou como “símbolo visual” a figura de uma “Sarça Ardente” com a inscrição em latim, “Nec Tamen Consumebatur” e, completando a visiografia do símbolo, está gravado o nome da instituição representada: “Igreja Presbiteriana do Brasil.” A sarça é uma touceira (união de rebentos emergentes da mesma matriz subterrânea ), própria das regiões inóspitas em processo de desertificação. Um belo símbolo da Igreja, corpo de eleitos redimidos fundamentado em Cristo Jesus sob o fogo da perseguição e dos sofrimentos naturais. O atual símbolo é uma árvore de copa expandida, muito verde, de tronco único e grosso, com áreas brancas, tipo falha na galhada, e um pássaro estilizado mergulhando de cabeça rente o tronco em direção do solo. Em baixo, a inscrição:
Igreja
PRESBITERIANA
Do BRASIL.Exatamente nesta disposição: em três linhas e parágrafos desalinhados. É o símbolo da nossa Igreja, que devemos acatar e usar, mas de pouca beleza estética e pobre de simbologia religiosa, a meu ver. Como logomarca já “pegou”, pois a logomarca é uma criação, artística ou não, de um sinal que, tornado “timbre” da empresa, fixado em seus veículos de comunicação (papéis, painéis, objetos e produtos ), torna-se-lhe “marca” identificadora. O símbolo religioso emerge da história e da tradição da Igreja, sendo, portanto, evocativo de fatos passados como, por exemplo, a videira, a arca, a sarça, a cruz, o peixe e outros. A Igreja, no meu entendimento, não deve possuir “logomarca,” por mais bela que seja, pois é riquíssima em signos e símbolos representativos e memorativos.
Mas os conflitos envolvendo a nossa logomarca não se encerram aí. Em 2010 surge uma nova batalha, agora para retirar a pombinha, alegando-se ser a quebra do 2º Mandamento. A pombinha foi finalmente retirada no SC-IPB-2014 chegando à logomarca atual da IPB:
3. O SENTIDO SÍMBOLO
Por fim, cabe discorrer um pouco sobre o porque de esse símbolo e esse lema serem tão caros aos presbiterianos, historicamente e ao redor de todo o mundo.
A sarça ardente simbolicamente representa a presença viva do Nosso Deus mesmo em meio à extrema aridez desértica. Há documentos do séc XVII que registram o NEC TAMEN como forma de afirmar que a igreja não cederia às perseguições, isso por que a presença de Deus é conosco mesmo em meio à hostilidade do mundo.
Sendo assim a mentalidade Presbiteriana foi formada acompanhada de uma noção de que o fogo pode arder, mas não irá nos consumir porque a presença de Deus nos envolve.
A fé reformada e, mais especificamente, o movimento presbiteriano passou por perseguição romana na Europa, na África e em todo o mundo. Também enfrentamos a secularização do mundo e persistimos. Também temos resistido às seitas e heresias modernas.
Eu particularmente entendo que símbolos e frases tem um papel formador muito importante na mentalidade das pessoas e creio ser um recurso muito proveitoso para instrução nossa. A Cruz, os Peixes, A Tulipa e a Sarça (com o NEC TAMEN) são alguns dos símbolos que a igreja desenvolveu ao longo de sua história, cheios de significado e poder formador sobre mentes e corações, isso porque sintetizam mensagens que são poderosas.
Apesar de tudo, graças ao SENHOR ainda temos a sarça como nosso timbre! Mas não custa lembrar: Deus é conosco no deserto. Ele pode fazer com que o fogo arda mas não nos machuque (até porque Ele mesmo é fogo purificador). É de bom proveito sim que nós presbiterianos nos apeguemos aos nossos distintivos visuais também!
Que tenhamos em mente a necessidade de honrar a Deus, de resistir ao fogo que queima ao nosso redor e agir como cristãos e como presbiterianos (Servos do SENHOR). Certamente essa simples postura e disposição mental seja um bom começo para que pensemos em revitalização num sentido mais amplo.
Que o SENHOR nos renove!