O Calendário Litúrgico: Um convite à catolicidade e à renovação devocional.

Diego Montenegro
18 min readMay 15, 2020

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É muito provável que você já tenha percebido que a maioria dos feriados ou dos dias especiais que temos ao longo do ano são datas religiosas. Dias santos, festejos em memória de santos e etc. Se você for um protestante, é provável que você nunca tenha refletido sobre isso, mas que tenha aquela resposta rápida no automático: isso é coisa de católico.

Neste texto eu quero esclarecer algumas coisas sobre esse tema e ver se ao fim consigo fazer com que essa resposta automática seja revista e, quem sabe, até tida como algo positivo.

1. Deus e as Festas

Primeiramente, é necessário dizer que Festas e Ocasiões Especiais ligadas à religião são tão antigas quanto a própria religião, ou seja, é difícil rastrear o início dos festejos religiosos. No Antigo Testamento vemos que esse elemento tornou-se parte da devoção religiosa do povo de Israel ao seu Deus YHWH. Não sabemos se Deus resolveu entrar no jogo justamente por perceber que esse elemento era comum a todas as religiões ou se Ele apenas tomou para si algo seu que estava sendo usado de forma indevida pelos pagãos. O certo é que Deus ordenou que se fizessem festas para Ele.

Sob ordem divina foram instituídas várias festas sendo a Páscoa a principal festa judaica, a qual lembrava o povo da sua libertação do cativeiro no Egito. Deus parece se agradar que seu povo tenha um Santo e Solene ajuntamento para se lembrar de seus feitos.

O elemento festivo se misturou de tal forma com a identidade do povo hebreu (e depois, judeu), que novas festas foram criadas e, ao que tudo indica, Deus não protestou contra elas. Isso pode significar que Deus dá ao seu povo — na pessoa de seus líderes legalmente instituídos — a autoridade para instituir outras datas que servem de marcos memoriais e devocionais para o povo. O maior exemplo desse segundo tipo de festas é o Purim, instituído pela Rainha Ester no exílio (Et 9). Eu não vou discutir se essas festas instituídas por homens — com o aval de Deus — estão no mesmo patamar das festas instituídas por ordem do próprio Deus, mas o certo é que ambas são válidas no Antigo Testamento e que foram muito importantes para o povo da Aliança.

2. A Igreja e as festas

O Novo Testamento não trata muito especificamente sobre esse tema, mas de tudo o que se lê em suas páginas o que se pode perceber é que essas festas tinham um importante ofício profético de anunciar coisas vindouras. Como o Apóstolo Paulo afirma em Colossenses 2, o cerimonialismo judaico — e as festas estão inclusas — eram a sombra de alguém que se aproximava, a saber, o Cristo de Deus, o nosso Senhor e Salvador Jesus. Estando pois o corpo presente, a sombra deixa de ter serventia.

Isso não significa que o cristianismo não seja, de certa forma, cerimonial também, como argumenta o reformador italiano Girolamo Zanchi. O papel da circuncisão hoje reside no sacramento do batismo, bem como o banquete pascal é representado pelo sacramento da Ceia do Senhor. Em suma, Cristo cumpriu e renovou o que as festas da antiga aliança prometiam e assim instituiu novas solenidades. É claro então, que só temos essas duas ocasiões públicas como obrigações religiosas: o batismo e a ceia. São as nossas “festas”.

A questão então é saber se é lícito que a Igreja — com base na autoridade que lhe é entregue pelo próprio Senhor Jesus — crie datas festivas para relembrar os feitos de Deus. Ao que parece o entendimento mais antigo da Igreja é que sim, a igreja pode recorrer a esse expediente para fins devocionais e memoriais. É por isso mesmo que muito cedo na história da Igreja iniciou-se um debate sobre a comemoração da Páscoa cristã, ou seja, um dia específico no Ano para lembrar a ressurreição do Senhor comemorando-a com o partir do pão.

Tristemente para nós a páscoa acabou se tornando uma data confundida com a própria ordenança da ceia e foi imposta como uma obrigação. Ao longo da história da Igreja outras datas festivas foram criadas, o que, como temos visto não é um problema em si. O problema é que ao longo da idade média essas festas passaram a estar repletas de obrigações, abusos e exigências supersticiosas.

Esse triste “final” todos conhecem, mas todos se esquecem de que os dias festivos foram sim, no início, bons instrumentos didáticos criados para lembrar a Igreja dos feitos de Deus e assim estruturar um calendário pautado na Pessoa do Senhor Jesus e não no mundo.

Indo na mesma direção de Zanchi, o reformador suíço François Turrettini afirma que a existência de festas não ordenadas no Antigo Testamento — como o Purim e a Festa da Dedicação — provam que

“em certos dias (que se repetem anualmente) pode haver uma comemoração pública dos benefícios singulares de Deus, contanto que estejam ausentes os abusos, a ideia de necessidade, mistério e culto, superstição e idolatria”.

3. A reforma e as festas

A Reforma protestante é conhecida como um movimento ad fontes, isto é, de retorno às fontes, às origens. Isso vale primeiramente pela recuperação dos textos bíblicos originais (em grego e hebraico) e também vale para a recuperação da tradição apostólica. Isso demonstra o entendimento dos reformadores de que A bíblia e a tradição apostólica precisam ser recuperadas.

Logo, uma das grandes preocupações da reforma — negativamente falando — foi limpar a igreja das superstições e abusos acumulados ao longo da idade média. Agora, se é fato que as festas religiosas em si mesmas são parte desses erros a serem rejeitados é de se esperar que a reforma também rejeitasse qualquer contato com essa tradição festiva. Contudo, não é o que percebemos ao acompanhar o movimento da reforma.

Primeiramente, é possível perceber que alguns documentos confessionais oriundos da reforma tratam do assunto não de forma negativa. A Segunda Confissão Helvética (1566), por exemplo, no seu artigo 24 afirma que

se na liberdade cristã, as igrejas celebram de modo religioso a lembrança do nascimento do Senhor, a circuncisão, a paixão, a ressurreição e sua ascensão ao céu, bem como o envio do Espírito Santo sobre os discípulos, damos-lhes plena aprovação. Não aprovamos, contudo, as festas instituídas em honra de homens ou dos santos. Os dias santificados têm a ver com a primeira Tábua da Lei e só a Deus pertencem.

Em suma essa confissão aprova a celebração de dias ligados aos atos do Senhor Jesus e do plano divino para a salvação, mas condena a celebração de dias aos homens.

O Sínodo Nacional de Dort, que regia as Igrejas Reformadas Holandesas, e que ficou famoso por organizar os famosos “Cinco Pontos do Calvinismo” além de produzir os artigos que refutaram o arminianismo, também aborda esse assunto em seu artigo 67 quando diz:

As congregações devem observar, além do Domingo, também o Natal, a Páscoa e o Pentecostes, com os dias seguintes. Como na maioria das cidades e províncias da Holanda, além disso, os dias da circuncisão e ascensão de Cristo também devem ser observados, todos os ministros, onde quer que este ainda seja o costume, se esforçarão, com as autoridades, para se conformaram com os demais dias.

Dort, um grande símbolo da Reforma também aprova, e mais, recomenda que as celebrações religiosas façam parte do calendário da Igreja.

Agora observe: tanto a Segunda Confissão Helvética como o Sínodo de Dort afirmam que esses dias podem ou devem ser celebrados opcionalmente, ou seja, tais datas não são sacramentais ou obrigatórias à igreja cristã. Isso faz parte da liberdade cristã e costume da igreja.

4. O puritanismo e as festas

Qual a razão, então, de a celebração dos dias do ano Cristão parecer a nós reformados brasileiros um costume tão estranho e soar tão “católico-romano”? Parte dessa resposta reside na própria reforma, que não é um movimento apenas. Ambas as confissões citadas acima (Dort e 2a Helvética) são chamadas de confissões Continentais, pois fazem parte da chamada Reforma Continental, que se deu em países do continente europeu (Bélgica, Suíça, Holanda e Alemanha principalmente). A tradição litúrgica e as festas cristãs são bastante presentes nessa tradição. No entanto a Reforma Britânica tem algumas diferenças.

A tradição do calendário litúrgico com as celebrações cristãs também é presente fora da reforma continental; na reforma inglesa, por exemplo, O Livro de Oração comum dividia o ano em estações ou tempos litúrgicos (Advento, Natal, Epifania, Quaresma, Paixão, Páscoa, Pentecostes e Trindade). A questão é que o Reino Unido sempre foi um ambiente muito instável religiosa, mas principalmente, politicamente falando. Não é possível entender o que aconteceu na esfera religiosa sem entender um pouco dos conflitos políticos.

O Rei Eduardo VI tornou o protestantismo oficial no Reino Unido, mas sua irmã Maria I, que era católica, reverteu a reforma e passou a perseguir os protestantes nos três reinos. Isso fez com que o clima anti-católico se aflorasse. Quando o protestantismo tornou a ser a religião oficial do Reino Unido (Rainha Isabel I) esse clima anti-católico era muito pior, sobretudo na Escócia. Os escoceses exigiam uma diferenciação clara entre a religião reformada e a romana. Ainda assim havia relativa unidade entre a Igreja Escocesa e Inglesa. Há relatos de que muitas igrejas escocesas utilizavam o livro de oração comum inglês, sem qualquer problema.

John Knox, o reformador escocês e pai do presbiterianismo buscou inspiração em Calvino e em Genebra para produzir um livro litúrgico alternativo ao inglês, o chamado Livro de Ordem Comum. Ademais, havia certa liberdade para que a igreja escocesa mantivesse algumas diferenças da inglesa.

Durante o Reinado do Rei Carlos I um Bispo Inglês chamado William Laud opôs-se ao avanço desse novo movimento escocês e tentou-se impor a obrigatoriedade do uso do Livro de Oração Comum inglês para todas as igrejas. Os escoceses obviamente não aceitaram e isso levou a um clima de tensão que culminou em uma guerra civil. Após a guerra o Reino Unido estava profundamente dividido entre Puritanos, ou dissidentes (escoceses e ingleses) e Anglicanos. Essa tensão radicalizou a oposição puritana e é justamente daí que surgem formas de liturgia opostas às da reforma inglesa. O Diretório de Westminster é o resultado de toda essa tensão e é também uma afirmação anticatólica direcionada a uma igreja que, apesar das diferenças, era sim protestante.

Em meio a muitas mudanças ocorridas com a ascensão do movimento puritano escocês radical estava a reforma da liturgia para um modelo mais simples e livre. Os documentos de Fé de Westminster não tratam da questão das festas especificamente, mas omitem qualquer menção às ocasiões festivas e isso pode ser tido como uma rejeição implícita. Ainda assim, o Diretório de Culto de Westminster reconhece que a Igreja pode determinar outras ocasiões para cultos e ações de graças além do Domingo. A confissão de Fé de Westminster também faz isso em seu capítulo 25 quando afirma que

… são partes do ordinário culto de Deus, além dos juramentos religiosos; votos, jejuns solenes e ações de graças em ocasiões especiais, tudo o que, em seus vários tempos e ocasiões próprias, deve ser usado de um modo santo e religioso.

Sendo assim, a reforma protestante seja continental ou insular (britânica) pautada no governo da Igreja e na Liberdade Cristã precisa admitir que as igrejas podem definir datas de celebração e ações de graças de acordo com seus respectivos costumes e o que for para um bom proveito, de um modo santo e religioso. Celebrar o Natal, a Páscoa e as demais festas não é um costume Puritano, pois esse movimento optou por separar-se dos demais ramos reformados que utilizam esse expediente e não há nisso um grande problema, contudo, o que não pode ocorrer é que esses irmãos puritanos tentem desmerecer o desqualificar todo o restante do cristianismo que optou pela manutenção dessa tradição.

É preciso deixar algo muito claro: os puritanos são apenas um movimento dentro da reforma. Logo, optar pelo calendário litúrgico não faz de alguém menos reformado, só faz de alguém um não puritano.

5. Dias santos?

É evidente que há sim preocupações e cuidados por parte daqueles que seguem o calendário litúrgico e as festas cristãs. Isso fez com que igrejas que não eram necessariamente do movimento puritano, com o tempo, abolissem o Calendário Litúrgico. Um dos cuidados é esclarecer que esses dias são dias de celebração e memorial especiais no sentido de que são dias de devoção adicionais. Não são, contudo, dias “sagrados”. Não há aqui a crença supersticiosa de que tais dias sejam de alguma forma santos em si mesmos. Isso é o que nos diz o reformador suíço François Turretini:

negamos que tais dias são em si mesmos mais santos que outros; antes, são todos iguais. Se alguma santidade lhes é atribuída, isso não pertence ao tempo e ao dia, mas ao culto divino. Assim, a observância deles entre aqueles que a retêm é apenas de direito positivo e de designação eclesiástica; contudo, não por necessidade de um preceito divino.

Turretini esclarece, portanto, que tais memoriais são parte do direito e designação das atribuições da Igreja Cristã, por regimento, por acordo, mas JAMAIS por imposição. O Reformador suíço complementa afirmando que uma ferramenta como o calendário litúrgico:

pode às vezes ser empregada com vantagem segundo as circunstâncias de tempo, lugar, pessoas e coisas (contanto que estejam ausentes abuso, superstição e idolatria, como foi feito não raramente na igreja primitiva).

Turretini pessoalmente parece ser crítico da manutenção dessas festas no calendário da igreja, mas isso não o leva a condená-las. Essa deveria ser a postura de todos. Passados séculos dessa tensão, a reforma madureceu e continua ocorrendo. O temor de ser confundido com papistas não é mais presente. A diferença entre católicos e protestantes é clara.

A igreja reformada, portanto, pode observar um calendário litúrgico desde que não hajam superstições quanto aos dias de de celebração e desde que tal prática não seja imposta sobre a vida eclesiástica estabelecida em cada comunidade, mas que seja fruto de uma vivência orgânica e pacífica. Finalizando, Turretini deixa claro que a celebração de festas cristãs por protestantes é muito diferente das festas católicas. Ele afirma:

Se algumas igrejas reformadas ainda observam algumas festas (como a concepção, a natividade, a paixão e a ascensão de Cristo), diferem amplamente dos papistas, porque dedicam esses dias somente a Deus, e não a criaturas. (2) Não lhes é atribuída nenhuma santidade, nem se crê estar neles nenhum poder e eficácia (como se fossem muito mais santos que os demais dias). (3) Não obrigam os crentes a uma abstinência escrupulosa e estrita demais de todo trabalho servil (como se nessa abstinência houvesse algum bem moral ou estivesse situada alguma parte da religião, e em contrapartida fosse uma grande ofensa se fazer qualquer trabalho nesses dias). (4) A igreja não está obrigada por nenhuma necessidade à observância imutável daqueles dias, mas, como foram instituídos por autoridade humana, assim pela mesma autoridade eles podem ser abolidos e mudados, caso a utilidade e a necessidade da igreja o exijam. […] Numa palavra, eles são considerados como instituições humanas. Estão ausentes a superstição e a ideia de necessidade.

6. Os dias de festas e o princípio regulador

Apesar de estar claro que a celebração de festas cristãs instituídas pela igreja dentro das suas atribuições próprias é algo comum na tradição cristã e mesmo na tradição reformada, e apesar de estar claro que há espaço para este expediente desde que observadas as distinções próprias da Reforma Protestante, essa tradição não é vista com tanta aceitação no Brasil, sobretudo entre os reformados brasileiros e isso se deve principalmente pelo fato de que o movimento reformado brasileiro é fortemente influenciado pela tradição puritana (não que sejam todos eles puritanos ou neopuritanos).

A base da argumentação contra a observância do calendário litúrgico ou de uma liturgia mais elaborada para os cultos é o Princípio Regulador do Culto. Com base no PRC afirma-se que ainda que haja precedente histórico do calendário litúrgico na Fé Reformada, esta prática não poderia ser admitida por não haver nas escrituras qualquer recomendação ou ordem para que a igreja cristã observe datas.

Primeiramente, precisamos reiterar que esses dias de celebração não são ordenanças. Não se está aqui defendendo seu uso como um elemento ordenado. Ainda assim a discussão repousa em outro problema: a observância dos dias cristãos, que não são uma ordenança, seriam uma violação ao PRC?Ocorre que essa ideia de que algo só pode ser feito se for ordenado nas Escrituras não é uma regra geral. Ela se aplica somente aos elementos do culto. O PRC não determina que textos devem ser pregados, que cânticos devem ser cantados no culto. Igualmente o PRC nada tem a dizer sobre as vestes a serem usadas pelo pregador, nem sobre a estrutura e organização do templo, tampouco sobre a duração do culto, horário de reunião e etc. Sabemos o que devemos fazer, mas algumas coisas sobre “como” devemos fazer pertencem à Liberdade Cristã.

O pregador tem liberdade para escolher que mensagens irá levar à comunidade. O conselho da Igreja tem liberdade para definir ocasiões oportunas para os cultos e assembleias e tudo isso sem que hajam ordenanças sobre essas coisas nas Escrituras. As Igrejas costumam celebrar seus aniversários de fundação, datas seculares como dia das mães, dos pais, das crianças, ou se engajar em campanhas como o outubro rosa e novembro azul e etc. Ou seja, essa noção já é posta em prática como prova da liberdade cristã na administração das circunstâncias de culto.

Também é necessário mencionar que há divergências quanto a interpretação do PRC. Alguns acreditam que somente salmos são permitidos em cultos solenes para que a igreja louve ao Senhor (Salmodia Exclusiva); outros que instrumentos musicais não devem estar presentes (acappellismo); outros acreditam que Salmos devem ser cantados, mas que hinos e cânticos também podem ser entoados no culto público (Salmodia Inclusiva). Enfim, há várias divergências quando o assunto é o PRC.

O certo é que utilizar o PRC para afirmar que não é lícito utilizar o calendário litúrgico com datas cristãs de ações de graças e celebração por não haver ordenança nas Escrituras é uma péssima utilização de tal princípio. O calendário litúrgico se encaixa nessa categoria de ferramentas de circunstâncias anexas ao culto. As datas de memorial religioso do calendário litúrgico não alteram ou adicionam elementos ao culto, mas tão somente organizam como o culto poderá ser disposto, quais as ocasiões anuais separadas para o memorial dos principais feitos de Deus em nosso Senhor Jesus. Essa organização do ano da igreja é feita por meio da seleção de textos e sermões específicos, cânticos apropriados, orações direcionadas e etc, tudo dentro do que prescreve o PRC e exatamente como o diretório de culto de Westminster prescreve quando fala de ocasiões especiais de ações de graças.

Assim, o uso do calendário litúrgico não altera em nada os elementos do culto como estabelecido pelo Princípio Regulador. O Culto continuará tendo os mesmos elementos, mas dispostos de forma a que cada domingo um passo seja dado no curso da história da salvação de Deus em Cristo, o que convida nossas mentes e corações a entrar de forma viva nessa história redentiva ao longo de cada ano.

7. O Ano Cristão e a renovação da vida devocional

Um último tópico que se poderia abordar em defesa do uso do Calendário Litúrgico e das datas cristãs é o seu papel cativante sobre nossos corações e imaginações. É interessante notar que mesmo as igrejas que não seguem o calendário cristão utilizam-se dessas datas temáticas em lições para as crianças nas escolas dominicais e isso porque é sabido de todos o poder formador que essas histórias tem sobre as crianças em desenhos e músicas. James Smith em “Você é aquilo que ama” afirma que:

As crianças são animais ritualísticos que absorvem o evangelho em práticas que falam à sua imaginação. Essa é uma razão importante para fazer da música um aspecto do culto familiar. Como frequentemente se parafraseia que Agostinho teria dito, “aquele que canta ora duas vezes”. Há algo que opera na cadência de uma melodia e na poesia de um hino que faz o relato bíblico penetrar em nós de forma permanente.

É necessário dizer que nós não somos tão diferentes assim das crianças. Nossa parte imaginativa e estética também reage a estímulos e se não nos estimularmos com delícias espirituais, as carnais o farão. O mundo está cheio de noções litúrgicas de tempos e temporadas e a igreja está sim imersa nisso. O natal secular, a páscoa secular, o carnaval, as festas juninas, as datas cívicas, as férias, a black friday a temporada de estreia de uma série, o seu hiato e etc. Tudo isso tem poder formador sobre como nos comportamos, sobre o que desejamos, sobre nossas aspirações e afeições. Não é tão fácil se destacar disso como se pode pensar. Somos seres litúrgicos, a questão é qual liturgia queremos deixar que molde nosso ano mental e nossos corações: a cristã ou a secular?

Nesse sentido, as estações do ano cristão tem mesmo um papel de renovar nossa vida devocional para além da igreja, fazendo com que nossas casas venham a se tornar em um ambiente memorial dos feitos do Senhor. Smith continua e diz que:

As liturgias formadoras de um lar cristão dependem da riqueza eclesiástica do culto da igreja. Como seria deixar os ritmos da adoração cristã comunitária definirem o tom da cadência cotidiana em nossos lares? A adoração familiar será formadora conforme atingir nossa imaginação, não apenas nosso intelecto. Para realizar isso, essa adoração precisa lidar com a moeda estética da imaginação: histórias, poesia, música, símbolos e imagens. Tal adoração terá de ser palpável, tangível e encarnada. (Pense em todas as lições práticas do profeta Jeremias como um modelo bíblico aqui.)

Portanto, o Calendário Cristão é um excelente passeio por toda a Bíblia e enfatiza por meio de uma narrativa viva e palpável tudo o que Deus tem feio por seu povo. Sendo assim essa é, sem dúvidas, uma ótima ferramenta não apenas para moldar a disposição mental da Igreja ao longo do ano, mas também para fazer com que nossas casas estejam, de certa forma, dentro da Igreja bem como que as Igrejas estejam dentro de casa.

Ainda sobre a utilidade do Calendário Litúrgico, Smith afirma que:

Essa é também uma razão para convidar sua família para os ritmos do calendário litúrgico ou do “ano cristão”. Os ritmos do Advento e do Natal, da Epifania e do Pentecostes, da Quaresma e da Páscoa são uma forma sem igual de compartilhar a vida de Jesus. As cores dessas épocas podem se tornar parte do pano de fundo espiritual do seu lar, moldando o éthos de uma família. A púrpura real do Rei, o branco brilhante da época de Natal e o vermelho-fogo do Pentecostes criam juntos um tipo de universo simbólico que nos convida a uma história diferente. Essas épocas também possuem seus rituais palpáveis. As famílias podem se divertir criando juntas uma grinalda para o Advento a cada ano, e as crianças podem participar ativamente acendendo as velas de esperança, amor, alegria e paz — muitas vezes conhecidas como vela do Profeta, vela de Belém, vela do pastor e vela do amor — , já antecipando o acendimento da vela de Cristo, no Natal. Durante a Quaresma, as famílias podem observar juntas uma forma de jejum em que as barrigas roncando são uma forma visceral de aprender sobre a fome e a sede de justiça. O culto em família possui um caráter físico que nos incentiva a compreender o evangelho de uma nova forma, por caminhos que marcam nossa imaginação e, assim, moldam como nos comportamos no mundo.

Calendário Litúrgico — O Ano Cristão: Por Diego Montenegro, com base no Lecionário do Livro de Oração Comum Revisado pelos Divinos de Westminster (1661).

Portanto, preencher nosso calendário com datas que dizem respeito à Pessoa e Obra de Jesus significa que queremos fazer parte dessa história mais que apenas racionalmente falando, queremos de fato adentrar nessas histórias vivendo a cada ano — tanto nas Igrejas como em nossas casas — a expectativa da chegada de Emanuel, a alegria de receber o Messias recém nascido, de ver a glória do seu Batismo e Ministério, da contrição de sua tentação e jejum, da dor e paixão em seu sacrifício, da majestade com que ressurgiu dos mortos e acendeu e o poder dado a nós pelo envio do Espírito Santo. É uma série com várias temporadas que dura o ano todo, ano após ano, e nos conduz na narrativa mais importante de todas: O que Deus fez em Cristo, nosso Senhor. É disso que se trata observar datas cristãs ao longo do ano. Essa é a nossa festa.

Conclusão

Por fim, está claro que — tomados os devidos cuidados — o uso do calendário litúrgico tão somente proporciona à igreja uma unidade de pensamento pautada na história em que está inserida, não meramente como espectadora, mas como participante. Ao pensar sobre a vinda do Messias, seu nascimento, sua morte e ressurreição a igreja entende seu papel na história, sua origem e destino na caminhada com Jesus. As pregações, orações e cânticos no culto público passam a ser orientadas e dispostas para contar essa história de forma organizada, cativando nosso imaginário e nossos corações ainda mais. Nossos cultos domésticos passam a transformar nossas casas em templos decorados de acordo com a lição sob a qual estamos sendo moldados e nossas mesas de refeições se transformam em mesas da santa comunhão e reflexão acerca dos grandes benefícios que temos recebido de Deus. Que possamos meditar nos benefícios que essas ferramentas tem a nos oferecer.

Finalmente, sim… observar estas festas é “coisa de católico”, pois elas derivam de eventos bíblicos ligados à vida e obra de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, relembrá-los remonta à igreja Universal (católica) de Cristo, aos pais apostólicos, a tantos outros, bem como aos reformadores e a muitos depois deles, chegando a nós. Isto é catolicidade.

Finalizamos com as palavras de Timothy Keller que diz:

O evangelho cristão ensina que somos salvos — transformados para sempre — não por nossos atos, nem mesmo pelo que Jesus diz a quem encontra, mas pelo que ele fez por nós. Assim, o melhor modo de descobrirmos a graça e o poder transformadores de Jesus é olhando para o que ele realizou nos principais acontecimentos da sua vida: no nascimento, no sofrimento no deserto e no jardim do Getsêmani, nas últimas horas com os discípulos, na morte na cruz e na ressurreição e ascensão. É por meio de seus atos nesses momentos que Jesus conquista, em nosso lugar, uma salvação que jamais conseguiríamos conquistar. Enxergar isso pode levá- lo da familiaridade com Jesus como mestre e figura histórica a um encontro transformador de vida com ele como redentor e salvador.

Referências

Segunda Confissão Helvética (1566)
A Ordem da Igreja — Sínodo Nacional de Dort (1618–1619)
O Diretório de Culto Público de Westminster (1645)
Confissão de Fé de Westminster (1646)

Sobre as Festividades, Por Girolamo Zanchi — Traduzido por Tradição Reformada;
Por que um cristão reformado deveria aprovar o calendário litúrgico? — Jardson Targino.

Compêndio de Teologia Apologética — François Turretini (Cultura Cristã).
Encontros com Jesus — Timothy Keller (Vida Nova)
Você é aquilo que ama — James K. Smith (Vida Nova)

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Diego Montenegro

Esposo. Cristão Reformado. Mestre em Geografia e professor. Tentado a mostrar isso em palavras {1 Pedro 3:15}